Eram as telhas feitas nas coxas

 

 

 

Eram as telhas feitas nas coxas das escravas?

José La Pastina Filho

Arquiteto restaurador, Professor de Arquitetura da UFPR e Superintendente Regional da 10a SR/IPHAN, Brasil.

 

 

 

Resumo:

O uso de telhas cerâmicas do tipo capa e canal foi generalizado no Brasil desde os primeiros momentos da colonização. A simplicidade do processo de fabricação desse tipo de telhas - às vezes no próprio local das obras -, a ausência de padronização e as diferenças de qualidade entre os incontáveis fabricantes acabou gerando a expressão popular “telhas feitas nas coxas dos escravos”. A disseminação desta expressão por todo o território brasileiro é constantemente reforçada por matérias jornalísticas e mesmo por alguns historiadores que insistem em reproduzi-la.

 

Palavras-chave: Arte Popular; Telha Colonial; Imaginário

 

 

INTRODUÇÃO

O uso da telha cerâmica do tipo capa e canal ou romana, de forma tronco-cônica, conhecida no Brasil por vários outros nomes, generalizou-se em todo o território nacional desde os primeiros momentos da colonização. A facilidade de sua fabricação no próprio local da obra, evitando-se assim o caro e às vezes impossível transporte, é uma das causas da inexistência de padronização em termos de forma e dimensões que variavam de 0,45 a 0,80m. No sul do país, as telhas apresentam em média 0,55m de comprimento.

A não padronização e as diferenças de qualidade entre os incontáveis fabricantes acabaram por originar a expressão popular, de cunho pejorativo e racista, “feita nas coxas dos escravos” (ou “das escravas”, o que confere à expressão um certo tom de sensualidade). É evidente que sua origem está na comparação entre a forma das telhas tradicionais e a da parte superior das pernas dos seres humanos ambas de forma tronco-cônica. Além disto, a generalização do uso desta expressão resultou na ampliação de seu conceito no sentido de designar qualquer obra ou objeto sem constância de formas ou dimensões, em outras palavras, de má qualidade.

Nesta comunicação, analisaremos a veracidade ou não dessa expressão, com base em pesquisas e obras de restauração que realizamos nos últimos 30 anos, todas elas, evidentemente, envolvendo o problema das coberturas dos edifícios.

 

SENHOR MANNES, UM OLEIRO TRADICIONAL

Ao percorrer, em 1976, o litoral do Estado de Santa Catarina em busca de telhas para a restauração da Fortaleza de Santa Cruz, na Ilha de Anhato Mirim, tive a oportunidade de visitar uma olaria artesanal, pertencente ao Sr. Antônio Mannes, no vale do rio Tijucas, importante e tradicional centro oleiro do estado. O proprietário, à época com mais de 70 anos, havia deixado de fabricar as telhas tradicionais, não apenas pelo desinteresse de seus filhos que preferiam fabricar tijolos, cujas perdas no processo de fabricação eram menores, mas também pela proliferação do uso das telhas de fibro-cimento, símbolo de “status” e modernidade. Antes disto, havia enfrentado a concorrência das telhas do tipo “francesa”, cuja fabricação implicava no uso de máquinas e equipamentos mais sofisticados, como prensas e moldes metálicos, e dominavam o mercado dos centros urbanos mais desenvolvidos.

Nos recônditos de sua singela olaria, o Sr. Mannes recolheu seus esquecidos instrumentos de trabalho e, num gesto de extrema deferência para com um absolutamente improvável cliente, fabricou duas telhas para que pudéssemos documentar o processo que ele, até poucos anos antes, usava para garantir o sustento de sua família. Seu prazer e dedicação eram indisfarçáveis: com um cigarro de palha apagado entre os lábios, ditava ordens para seus filhos: - esse barro num tá bom, maromba direito! Me pegue o bidoco! Limpe o guanape! Traga pó de tijolo...

Num plano de trabalho sobre o qual é aspergido um punhado de pó de tijolos ou de areia muito fina, é colocado o molde, pequena estrutura de madeira de forma trapezoidal, nas dimensões da telha planificada, acrescidas de, em média 10% no sentido longitudinal e de 3 a 3,5% no transversal, para compensar as retrações sofridas no processo de secagem e queima. A altura do molde determina a espessura da telha e, dadas suas pequenas dimensões, a retração é desprezível, não havendo portanto preocupação com sua compensação.

Sobre o molde é lançada, com adequada pressão, a lastra, um punhado de barro que é suavemente comprimido em seu interior. O excesso de material é removido com um arco de madeira dotado de uma corda de arame ou crina de cavalo, denominado bidoco.

 

2 La Pastina Filho fig 01

Figura 1. Sr. Mannes iniciando a fabricação. Notar o “guanape” em primeiro plano.

 

Num plano inferior está o guanape, molde de forma tronco-cônica, cuja superfície é exatamente igual à do molde que recebe a lastra e sobre o qual esta é cuidadosamente depositada. Com as mãos umedecidas é dado o acabamento da superfície externa da telha, alisando-a delicadamente. Em ambas as extremidades, com os dedos, faz-se um pequeno sulco, que cumpre a importante função de pingadeira, isto é, evita o refluxo das águas pluviais por capilaridade para o interior do telhado. A telha é então transportada, ainda sobre o molde, para o estaleiro, conjunto de estantes de madeira sobre as quais são pregadas ripas, adequadamente espaçadas conforme o mesmo ângulo formado entre as diferentes extremidades das telhas. Com rápido movimento de torção e tração, o guanape é removido, ficando a telha recém fabricada contida pelas ripas laterais, não sofrendo, portanto, quaisquer alterações em sua forma original. Após um período de secagem que depende das condições climáticas do local e que varia de dez a quinze dias, a telha está pronta para sofrer o processo de queima, em forno de carvão vegetal.

 

2 La Pastina Filho fig 02

Figura 2. Acabamento da superfície.

 

2 La Pastina Filho fig 03

Figura 3. Estaleiro para secagem das telhas.

 

PARA CONCLUIR...

Como se pode verificar, o processo tradicional de fabricação de telhas do tipo capa e canal (ou goivas, de canudo, romanas, meia cana, coloniais, etc.) é bastante simples e não envolve avançadas tecnologias. A propósito, em oficina ministrada no 7º Festival de Inverno da Universidade Federal do Paraná, realizado em Antonina, em julho de 1997, alunos do Curso de Arquitetura e Urbanismo fabricaram telhas, na escala 1:2, conforme a técnica tradicional utilizando-se de equipamentos similares aos acima descritos, que foram, com precárias ferramentas como um serrote e um facão, rapidamente providenciados.

Para confirmar nossa convicção da inconsistência da assertiva popular - telhas feitas nas coxas dos (as) escravos (as) - tomamos as medidas das coxas de um homem de 1,80m de altura e verificamos que, usando-a como molde, só seria possível a fabricação de uma minúscula telha de 36cm de comprimento. Sem maiores preocupações com aspectos de anatomia humana, se estabelecermos uma simples regra de três, poderemos verificar que, para fabricar uma telha de 77cm, precisaríamos contar com um escravo (a) de 3,85m de altura. Além disto, em termos de otimização de força de trabalho, mesmo numa sociedade escravocrata, teríamos uma perda substancial na força de trabalho: um escravo imobilizado, com lâminas de barro sobre suas duas coxas, e pelo menos dois outros para remover cada uma delas e transportá-las ao estaleiro.

Uma outra solução seria deixar que as telhas secassem no corpo do escravo (a), e com isto, ele (a) teria, para cada duas telhas fabricadas, quinze dias de descanso, que seriam, evidentemente descontados de seu salário, ou de suas férias...

 

 

ABSTRACT: 

“Capa and canal” ceramic roofing tiles have been used in Brazil since early in the colonization period. The simplicity of the manufacturing process, combined with the lack of standardization and the differences in quality among the manufacturers, helped coin the expression “made on the thigh of slaves”. The spread of this saying throughout Brazil is constantly reinforced by journalists and historians who insist on its use.

 

Key-words: Popular Art, Colonial Styles, Imaginary.

 

 

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