Resenha de Livro:

Across Atlantic Ice: The Origin of America’s Clovis Culture

Mercedes Okumura

PPGArq, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Quinta da Boa Vista, São Cristóvão, 20940-040, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.  Email: mercedes@mn.ufrj.br

 

 

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Across Atlantic Ice: The Origin of America's Clovis Culture (em português: Através do Gelo Atlântico: A Origem da Cultura Clovis da Amércia)

por Dennis J. Stanford & Bruce A. Bradley

University of California Press, 2013, pp. 336. ISBN 9780520275782

http://www.ucpress.edu/book.php?isbn=9780520275782

 

Não seria exagero afirmar que Clovis é a cultura arqueológica mais conhecida e discutida das Américas, em parte porque encontra-se fortemente relacionada às hipóteses do povoamento mais antigo desse continente. O livro escrito por Stanford e Bradley tem por objetivo desmontar o modelo de povoamento das Américas mais tradicional que propõe uma origem asiática para os antepassados ​​de Clovis no fim do Último Máximo Glacial (UMG).

O livro é apresentado em duas partes principais, a primeira (“Paleolithic Peoples”) apresenta dados que desafiam os tradicionais modelos que colocam a cultura Clovis como aquela relacionada aos primeiros americanos. Essa primeira parte também apresenta as evidências principais que sustentam a hipótese de que os grupos que potencialmente teriam originado a tecnologia pré-Clovis e Clovis não se encontram na Beríngia. A segunda parte (“The Solutrean Hypothesis”) trata de apresentar evidência que apoia a conexão histórica entre a cultura Solutreense e Clovis.

Dado que parte importante do argumento construído pelos autores baseia-se na análise e comparação da tecnologia lítica de diversos grupos pré-históricos relacionados de algum modo aos modelos de origem da cultura Clovis, o primeiro capítulo trata dos fundamentos da tecnologia de pedra lascada. Embora os autores enfatizem os principais tópicos relacionados às comparações tecnológicas usadas para sugerir relações históricas e cujo entendimento é essencial para a leitura e compreensão dos capítulos subsequentes, esse capítulo é de interesse de qualquer pesquisador que queira aprender os conceitos básicos de tecnologia lítica. Além disso, são apresentadas informações úteis sobre diferentes tipos de tradições paleolíticas e técnicas de fabricação de instrumentos líticos.

O capítulo 2, conforme o título sugere (“Clovis: defining Clovis beyond the famous points”), apresenta uma ampla revisão sobre o que poderia caracterizar a cultura Clovis além de suas famosas pontas bifaciais. A partir do número de pontas diagnósticas e de sua variação, assim como da fonte de matéria-prima de artefatos encontrados em depósitos (“cache”), é proposto que a cultura Clovis teria se dispersado pelo território norte americano seguindo uma direção sudeste. Esse capítulo também aborda questões relacionadas à subsistência desses grupos, que teria variado de acordo com os diferentes ambientes explorados. Ainda, é oferecida uma descrição de artefatos feitos de materiais orgânicos (ferramentas feitas em osso, chifre ou marfim), bem como pequenas pedras com incisões, que poderiam ser algum tipo de ornamento Clovis.

Uma vez que o modelo tradicional propõe que os antepassados ​​de Clovis vieram da Beríngia, o capítulo 3 é dedicado a derrubar tal hipótese. Os dados apresentados indicam que os grupos da Beríngia não apresentavam tecnologia bifacial adelgaçante e grandes lâminas, que seriam as principais características da tecnologia Clovis e, portanto, algo que se esperaria observar em grupos que potencialmente teriam dado origem a essa cultura. Ainda, datações indicam que a Beríngia teria sido colonizada por humanos há menos de 12.000 anos (quando termina a Era do Gelo), o que também depõe contra o modelo clássico.

O capítulo “Challenging the Clovis First Model” propõe que se a cultura Clovis estava bem estabelecida na América há pelo menos 13.000 anos, então seu potencial antepassado teria que ser procurado em sítios mais antigos que essa data. Assim, os autores apresentam dois sítios do Médio Atlântico (Meadowcroft e Cactus Hill) cuja cultura material poderia ser considerada como potencial ancestral da cultura Clovis, uma vez que apresentam datas mais antigas que Clovis e tecnologia bifacial e de adelgaçamento. Outros sítios relevantes (Miles Point, Oyster Cave e Cinmar) também são descritos. Além disso, discutem-se as diferenças tecnológicas entre esses sítios antigos do Atlântico Médio e Clovis, enfatizando a presença de acanaladura como técnica de adelgaçamento basal presente nas pontas Clovis, mas não nas do Atlântico Médio.

Uma vez que não há evidências de sítios na Beríngia que poderiam ser considerados como evidência de grupos ancestrais de ​​pré-Clovis e Clovis (em termos de cronologia e tecnologia), no Capítulo 5 os autores se debruçam sobre a cultura Solutreense. É apresentada uma breve introdução sobre a sequência de culturas arqueológicas do Paleolítico Superior Europeu, que visa enfatizar a singularidade da cultura Solutreense. Sítios associados ao Solutreense ocorrem no último grande período glacial (entre 25.000 e 16.500 anos) e os autores descrevem com maior detalhe os sítios do sudoeste da França e do norte da Espanha, devido ao maior grau de similaridade tecnológica entre esses sítios dessa região com as culturas pré-Clovis e Clovis. Todos os sítios Solutreenses conhecidos estão localizados em abrigos ou cavernas e sua distribuição é mais restrita do que a de outras culturas do Paleolítico Superior, embora o comportamento de subsistência Solutreense seja semelhante ao padrão europeu do Paleolítico, isto é, de uma subsistência baseada na caça de animais terrestres. Em termos de ferramentas líticas, os sofisticados bifaces de duas pontas (no original, bipointed bifaces) feitos com tecnologia adelgaçante (conhecidos como folhas de louro) são o artefato Solutreense mais característico. A pequena proporção entre espessura e largura e seu grande tamanho (alguns com mais de 50 cm de comprimento) apontam para a necessidade de enorme habilidade de lascamento dos indivíduos que manufaturaram esses artefatos, o que sugere fortemente uma função simbólica das mesmas. Assim, as folhas de louro seriam uma materialização das habilidades de precisão e planejamento estratégico (no lascamento), uma vez que tais aptidões também são necessárias para a realização bem-sucedida de caçadas complexas, pode-se propor uma relação entre esses artefatos e o ato da caça. Essas folhas de louro também são encontradas em depósitos, o que também suporta a ideia de serem artefatos com alto grau de simbolismo.

Os dois capítulos seguintes são dedicados a uma comparação quantitativa e qualitativa entre diferentes grupos (Clovis, Paleolítico Superior Europeu e Beríngia), utilizando principalmente aspectos da tecnologia lítica que visam estabelecer conexões culturais. A comparação quantitativa usando análise de agrupamento por tipo de ferramenta e tecnologia mostra os grupos Paleo-Americanos mais antigos próximos da cultura Solutreense. Essa similitude também foi verificada na comparação qualitativa, que incluiu a forma e função de artefatos, presença de inovação cultural, padrões de subsistência, características ambientais, arte, depósitos de bifaces, entre outros. Diferenças nos tipos de artefatos entre sítios também foram apresentadas como evidência contrária para uma conexão entre Clovis e Solutreense.

O próximo capítulo apresenta evidências sobre como e por que uma conexão transatlântica teria ocorrido. Os autores descrevem como alguns grupos Solutreenses teriam expandido seu território de exploração para incluir recursos marítimos. A maior parte do modelo baseia-se em locais próximos da costa durante a idade do gelo no norte da Espanha, especialmente na caverna La Rivera.

O Capítulo 9 mostra como o clima e o ambiente mudaram durante o UMG. Nesse período, as águas do Atlântico Norte não eram muito frias e sua produtividade não era demasiada baixa para sustentar a vida animal (incluindo os seres humanos). Assim, alguns grupos Solutreenses teriam adotado uma economia marítima e, ao explorar esses recursos, teriam atravessado o Atlântico. Essa hipótese é desenvolvida no próximo capítulo, invocando uma convergência de estratégias de estilo de vida entre grupos esquimós e Solutreense, uma vez que ambos os grupos teriam que enfrentar desafios ambientais semelhantes. Os grupos Solutreenses teriam se adaptado às mudanças ambientais incorporando a caça de animais marinhos, como focas, em seu repertório de subsistência. Dessa forma, alguns grupos Solutreenses teriam acompanhado o movimento das bordas das geleiras, eventualmente expandindo seu território e incorporando a costa leste da América do Norte.

Os autores concluem dizendo que, com base em datações, comparações de sítios arqueológicos e dados paleoambientais, a evidência que aponta os ancestrais de Clovis como grupos que migraram do sudoeste da Europa durante o UMG seria mais forte do que a evidência que apoia o modelo tradicional na qual grupos do nordeste da Ásia seriam antepassados de ​​Clovis.

O livro é bem escrito e sua leitura é bastante estimulante, tendo ganhado o prêmio “Smithsonian Secretary's Research” em fevereiro de 2016. Há dois pontos importantes nesse livro que valem a pena ser destacados. O primeiro ponto, bastante relevante para aqueles interessados em tecnologia lítica (mas não só para esse grupo), é mostrar como essa área de estudo pode desempenhar um papel fundamental no estabelecimento de conexões históricas entre culturas arqueológicas, desde que aliada a outros dados contextuais arqueológicos. O segundo ponto seria como a arqueologia enquanto disciplina pode se beneficiar de estudos que visem dar novos olhares a temas (que aparentemente parecem estar bem resolvidos) através da apresentação de novas evidências e da proposição de novos cenários baseados nessas evidências.

Nota do editor

Uma versão em inglês desta resenha foi publicada anteriormente no periódico científico Journal of Lithic Studies (doi:10.2218/jls.v3i1.1458).